quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A geografia em “ABRIL DESPEDAÇADO”¹


Por Aldo Dantas

Numa terra do “olho por olho”, “quem tem um olho é doido”. O consuetudinário é a marca da trama que se desenrola em uma Fazenda no sertão brasileiro em 1910. A geografia é aquela do tempo lento, a dinâmica dos lugares é quase nula, o lugar parece ser o próprio mundo, a técnica é aquela que ainda liga o humano ao tempo cíclico onde o novo não se instala e a repetição mantém a tradição e esmaga os sonhos, o prazer, a criação. Não existe ali a possibilidade de futuro e o presente é um movimento sísifo. O balanço  da  camisa  e  o  seu  lento  mudar  da  cor  vermelha  para  a  amarela  é  um  dos elementos que ditam o ritmo das pessoas desprovidas do humano. O naturalismo nos leva de imediato a Graciliano Ramos: o seu menino também se chama menino,  Menino mais velho e Menino mais novo. Lá, como cá é comum os animais terem nomes e as pessoas não. Pacu prefere ser Menino. E Menino é o grande personagem dessa poesia em forma de vídeo produzida por Walter Salles, inspirada em um romance albanês.

O movimento  do  filme  Abril  Despedaçado  é  regido  pelo  sentimento  de vingança, ou como diz a mãe: “aqui a morte é quem manda nos vivos”. No avesso, encontramos Norberto Elias: “a morte é um problema dos vivos”.

O filho do meio é quem tem a missão de vingar a morte do irmão mais velho. A trama escancara um problema vivido por muitas famílias espalhadas (ainda hoje?) pelo mundo afora: a luta ancestral entre famílias pela posse da terra e afirmação da honra. O rapaz de vinte anos se parte, se despedaça, pois tem diante de si a incumbência de honrar a terra e a família, dando sequência ao movimento cíclico e cego do “código” de vingança instalado na região, ao tempo em que sabe que, concretizado o fato, a vida lhe será efêmera. Assim como sabe que o tempo mecânico do relógio (mais um, mais um, mais um,...) está subordinado ao tempo cíclico da vida (menos um, menos um, menos um,...),  acelerado  pela  situação  em  que  se  encontra.  A  contradição  insuperável  e fundamental de Heráclito se instala de imediato: “Viver de morte, morrer de vida”.

O cenário é aquele da idade de ferro planetária. Ali se manifesta em toda a sua  plenitude o que para Edgard Morin, é a realidade dos nossos dias: “Estamos ainda na Pré-história do espírito humano”. Pensando com Ortega y Gasset não se sabe o que se passa, e é isso que se passa.

O lugar se chama Riacho das Almas e o Menino logo alerta “O riacho se foi, ficaram as almas”. Almas materializadas em corpos sem vida. É como se a alma nunca encontrasse o seu oposto e complemento, o corpo.

Mesmo neste cenário nefasto o humano insiste em se instalar, é o Menino quem melhor encarna essa insistência e o seu grande aliado é o livro (metáfora maior do espírito humano) que aguça a sensibilidade da criança, que  o pai não consegue matar, que leva o Menino para a utopia, que leva o Menino a perceber que ele não é um boi que “roda, roda e nunca sai do lugar”. É o Menino que, de forma trágica, quebra o ciclo. Ele dá sua vida em favor da vida do irmão e o irmão ao tomar a bifurcação,  nunca usada,  da estrada, encontra, no mar, toda a essência do Menino.

As práticas tornadas costumes e os costumes tornados práticas se confundem com  a  repetição  dos  eventos  ao  longo  das  gerações  e  elas  passam  a  regular  o comportamento dos indivíduos entre si e com as coisas. Gente, coisas e animais se confundem. Os costumes parecem funcionais e duradouros e reproduzem a sociedade. Entretanto  não  se  institucionalizam,  não  se  codificam,  o  elemento  regulador  externo parece não existir, o império é aquele da sacralização e a pré-história prece ter existência a-histórica, mas o Menino move a roda da história, da criação, da imaginação, do futuro, do Humano.

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1. Este texto foi publicado originalmente no livro Lugar-Mundo: PERVERSIDADES E SOLIDARIEDADES - encontros com o pensamento de Milton Santos em 2011.

Aldo Dantas é professor do departamento de geografia da UFRN.

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