Por Aldo Dantas
Numa
terra do “olho por olho”, “quem tem um olho é doido”. O consuetudinário é a
marca da trama que se desenrola em uma Fazenda no sertão brasileiro em 1910. A geografia
é aquela do tempo lento, a dinâmica dos lugares é quase nula, o lugar parece ser
o próprio mundo, a técnica é aquela que ainda liga o humano ao tempo cíclico
onde o novo não se instala e a repetição mantém a tradição e esmaga os sonhos,
o prazer, a criação. Não existe ali a possibilidade de futuro e o presente é um
movimento sísifo. O balanço da camisa
e o seu
lento mudar da
cor vermelha para
a amarela é
um dos elementos que ditam o
ritmo das pessoas desprovidas do humano. O naturalismo nos leva de imediato a
Graciliano Ramos: o seu menino também se chama menino, Menino mais velho e Menino mais novo. Lá,
como cá é comum os animais terem nomes e as pessoas não. Pacu prefere ser
Menino. E Menino é o grande personagem dessa poesia em forma de vídeo produzida
por Walter Salles, inspirada em um romance albanês.
O movimento do
filme Abril Despedaçado
é regido pelo
sentimento de vingança, ou como
diz a mãe: “aqui a morte é quem manda nos vivos”. No avesso, encontramos
Norberto Elias: “a morte é um problema dos vivos”.
O
filho do meio é quem tem a missão de vingar a morte do irmão mais velho. A trama
escancara um problema vivido por muitas famílias espalhadas (ainda hoje?) pelo mundo
afora: a luta ancestral entre famílias pela posse da terra e afirmação da
honra. O rapaz de vinte anos se parte, se despedaça, pois tem diante de si a
incumbência de honrar a terra e a família, dando sequência ao movimento cíclico
e cego do “código” de vingança instalado na região, ao tempo em que sabe que,
concretizado o fato, a vida lhe será efêmera. Assim como sabe que o tempo
mecânico do relógio (mais um, mais um, mais um,...) está subordinado ao tempo
cíclico da vida (menos um, menos um, menos um,...), acelerado
pela situação em que
se
encontra. A contradição
insuperável e fundamental de
Heráclito se instala de imediato: “Viver de morte, morrer de vida”.
O
cenário é aquele da idade de ferro planetária. Ali se manifesta em toda a
sua plenitude o que para Edgard Morin, é
a realidade dos nossos dias: “Estamos ainda na Pré-história do espírito
humano”. Pensando com Ortega y Gasset não se sabe o que se passa, e é isso que
se passa.
O
lugar se chama Riacho das Almas e o Menino logo alerta “O riacho se foi, ficaram
as almas”. Almas materializadas em corpos sem vida. É como se a alma nunca encontrasse
o seu oposto e complemento, o corpo.
Mesmo
neste cenário nefasto o humano insiste em se instalar, é o Menino quem melhor
encarna essa insistência e o seu grande aliado é o livro (metáfora maior do espírito
humano) que aguça a sensibilidade da criança, que o pai não consegue matar, que leva o Menino
para a utopia, que leva o Menino a perceber que ele não é um boi que “roda,
roda e nunca sai do lugar”. É o Menino que, de forma trágica, quebra o ciclo.
Ele dá sua vida em favor da vida do irmão e o irmão ao tomar a bifurcação, nunca usada,
da estrada, encontra, no mar, toda a essência do Menino.
As
práticas tornadas costumes e os costumes tornados práticas se confundem com a
repetição dos eventos
ao longo das
gerações e elas
passam a regular
o comportamento dos indivíduos entre si e com as coisas. Gente, coisas e
animais se confundem. Os costumes parecem funcionais e duradouros e reproduzem
a sociedade. Entretanto não se
institucionalizam, não se
codificam, o elemento
regulador externo parece não
existir, o império é aquele da sacralização e a pré-história prece ter
existência a-histórica, mas o Menino move a roda da história, da criação, da
imaginação, do futuro, do Humano.
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1. Este texto foi publicado originalmente no livro Lugar-Mundo: PERVERSIDADES E SOLIDARIEDADES - encontros com o pensamento de Milton Santos em 2011.
Aldo Dantas é professor do departamento de geografia da UFRN.
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