Por Jaime Oliva
17/08/12
17/08/12
Íntima, mas cheia de mistérios para o mundo social; próxima, mas sem
lugar estável no âmbito da ciência geográfica contemporânea, a natureza tem seu status
quo pouco debatido. Afinal, haveria ainda o que debater? Mas, o que é
mesmo a natureza?
Na sociedade contemporânea e, de um modo geral nas ciências, ela é
tratada, em geral, como o outro da sociedade. Logo, a dita
“relação” (“interação?”) humano (sociedade /cultura) ↔ natureza se daria entre
dois entes pertencentes a mundos diferentes. Isso que parece, para muitos, o
óbvio, é cada vez mais discutível. Por exemplo: o historiador Simon Schama no
seu Paisagem e Memória comenta que uma árvore nunca é apenas
uma árvore, pois a natureza não é algo anterior à cultura humana e independente
da história de cada sociedade. Do que ele está falando? Como a natureza
pode ser algo que só existiria pós-culturas humanas?
O estranhamento que uma afirmação como essa pode gerar, talvez expresse
um atraso no campo da geografia na discussão da natureza. Vejamos: na relação
do humano (diferentes agrupamentos sociais) com o mundo biofísico constroem-se
vários entendimentos sobre o que seria a natureza, logo, várias
naturezas. Pode-se, portanto, admitir que embora o mundo biofísico seja
relativamente estável no essencial do seu funcionamento, a natureza é uma
realidade mutante. O que é nesse caso a natureza? Trata-se do conjunto de
fenômenos, de conhecimentos, de discursos e de práticas resultantes de um
processo seletivo de incorporações de processos físicos e biológicos pela
sociedade, num dado momento, como diz o geógrafo Michel Lussault. É com o que
resulta dessas diferentes representações que o humano se relaciona
diretamente. Assim, longe de ser algo exterior à sociedade, um sistema
autônomo, a natureza é uma construção social. Ela se encontra integrada sob
diferentes aspectos, no menor objeto da sociedade e, portanto, nas
configurações espaciais das mais diversas escalas.
Esse entendimento é tributário de posturas cognitivas do construtivismo
epistemológico. Passa por vários autores, e entre eles o que o explicita mais
radicalmente é Bruno Latour. Esse tipo de compreensão rompe com o pensamento
ocidental moderno da natureza, que separa radicalmente a cultura/sociedade da
natureza e trata as divisões como zonas ontológicas totalmente distintas. A
geografia física assim o fez... As ciências sociais também, onde o não
humano não é visto como seu objeto.
Em livro clássico (de 1968) Serge Moscovici abre uma discussão fértil a
respeito do status na natureza no conjunto social. Para ele as
diferentes sociedades edificam estados da natureza que
correspondem a seus esquemas culturais e suas lógicas sociais, num momento
histórico dado. Entre esses esquemas culturais inclui-se um muito poderoso das
sociedades modernas: as ciências. Desse modo, pode-se dizer que: existem
sistemas biofísicos cuja existência é anterior e possível sem o humano, mesmo
que o pensamento (e o conhecimento) a respeito só seja possível com o ser
humano. Eles podem ser estudados por cientistas específicos sem a presença do
humano. Entretanto, quando se estudam os sistemas biofísicos o instrumental
teórico criado pelo humano funciona como um construtor de uma natureza,
que será outra perante os olhos dos humanos que não tenham esse dado
instrumental. Isso permite que a natureza que se enxerga não se separa
das lógicas vinculadas às possibilidades do pensamento construtor. Discursar
sobre a força gravitacional, ou sobre uma bactéria já é falar da sociedade,
como diz Bruno Latour. Ele argumenta que cada sociedade constrói seus estados
da natureza que asseguram a partição, a distribuição e um regime de relações
entre o humano e o não humano. O regime relacional contém uma dimensão
ideológica, que ao lado das práticas gera um compromisso. O compromisso moderno
foi a separação radical e a dominação da natureza. Mas, há evidências que há
uma redefinição desse compromisso em nossos dias. Ao menos, ele está em causa
com o questionamento crescente, catalisado parcialmente e de diversas formas
pela “cultura ambientalista”.
Algo que já devia estar estabelecido na cultura geográfica é que nem
todos os elementos dos sistemas biofísicos estão presentes na (s) natureza (s),
além do que a importância dos elementos incorporados é variável. Por exemplo: a
geomorfologia já foi mais importante na natureza do geógrafo do que ela é
atualmente, ao menos é isso o que afirma Georges Bertrand. A natureza do
mundo medieval não é a moderna. Mesmo contemporaneamente, a diversidade
biológica era valorizada e considerada diferentemente do que é hoje. Por esse
raciocínio pode ser dito que cada sociedade seleciona permanente e
diferentemente o que é natural e o que não é, o que permite distinguir a cada
momento que representações as sociedades têm do que a distingue da natureza
(que ela mesma constrói). Mas, possibilita também distinguir o que separa a
natureza do mundo biofísico.
Uma conclusão parcial que pode alterar um pouco as discussões seria o
reconhecimento que não são os sistemas biofísicos propriamente ditos que
constituem o desafio social maior (aliás, não os conhecemos em si, nem em sua
integralidade). O grande desafio contemporâneo é compreender como construímos a
natureza e a integramos no conjunto social. Outro desafio é perceber que
considerando esse ponto de vista que as únicas ciências naturais são as
ciências sociais. Aliás, é lógico concluir que a natureza existe no interior
das sociedades antes das ciências naturais.
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Jaime Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo, na área temática de Geografia.
Jaime Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo, na área temática de Geografia.
Bibliografia
BERQUE, Augustin. Ecoumène.
Introduction à l’étude des millieux humains. Paris: Belin, 2000. 445 p.
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culture. Paris: Éditions Gallimard, 2006. 618 p.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos
modernos. São Paulo: Editora 34, 1994. 149 p.
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na
democracia. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza. São Paulo/Bauru:
Edusc, 2004. 412 p.
LUSSAULT, Michel. Nature (Espace et) In: LÉVY, J.
et LUSSAULT, M. Dictionnaire de la Géographie et de l’espace des
sociétés. Paris: Belin, 2003. p. 657-661.
MOSCOVICI, Serge. Essai sur l’histoire
humaine de la nature. Paris: Flammarion, 1968. 687 p.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Cia das
Letras, 1996. 645 p.
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