sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A NATUREZA NA SOCIEDADE E NA GEOGRAFIA

Por Jaime Oliva
17/08/12

Íntima, mas cheia de mistérios para o mundo social; próxima, mas sem lugar estável no âmbito da ciência geográfica contemporânea, a natureza tem seu status quo pouco debatido. Afinal, haveria ainda o que debater? Mas, o que é mesmo a natureza? 

Na sociedade contemporânea e, de um modo geral nas ciências, ela é tratada, em geral, como o outro da sociedade. Logo, a dita “relação” (“interação?”) humano (sociedade /cultura) ↔ natureza se daria entre dois entes pertencentes a mundos diferentes. Isso que parece, para muitos, o óbvio, é cada vez mais discutível. Por exemplo: o historiador Simon Schama no seu Paisagem e Memória comenta que uma árvore nunca é apenas uma árvore, pois a natureza não é algo anterior à cultura humana e independente da história de cada sociedade.  Do que ele está falando? Como a natureza pode ser algo que só existiria pós-culturas humanas?

O estranhamento que uma afirmação como essa pode gerar, talvez expresse um atraso no campo da geografia na discussão da natureza. Vejamos: na relação do humano (diferentes agrupamentos sociais) com o mundo biofísico constroem-se vários entendimentos sobre o que seria a natureza, logo, várias naturezas. Pode-se, portanto, admitir que embora o mundo biofísico seja relativamente estável no essencial do seu funcionamento, a natureza é uma realidade mutante. O que é nesse caso a natureza? Trata-se do conjunto de fenômenos, de conhecimentos, de discursos e de práticas resultantes de um processo seletivo de incorporações de processos físicos e biológicos pela sociedade, num dado momento, como diz o geógrafo Michel Lussault. É com o que resulta dessas diferentes representações que o humano se relaciona diretamente.  Assim, longe de ser algo exterior à sociedade, um sistema autônomo, a natureza é uma construção social. Ela se encontra integrada sob diferentes aspectos, no menor objeto da sociedade e, portanto, nas configurações espaciais das mais diversas escalas.

Esse entendimento é tributário de posturas cognitivas do construtivismo epistemológico. Passa por vários autores, e entre eles o que o explicita mais radicalmente é Bruno Latour. Esse tipo de compreensão rompe com o pensamento ocidental moderno da natureza, que separa radicalmente a cultura/sociedade da natureza e trata as divisões como zonas ontológicas totalmente distintas. A geografia física assim o fez...  As ciências sociais também, onde o não humano não é visto como seu objeto.

Em livro clássico (de 1968) Serge Moscovici abre uma discussão fértil a respeito do status na natureza no conjunto social. Para ele as diferentes sociedades edificam estados da natureza que correspondem a seus esquemas culturais e suas lógicas sociais, num momento histórico dado. Entre esses esquemas culturais inclui-se um muito poderoso das sociedades modernas: as ciências. Desse modo, pode-se dizer que: existem sistemas biofísicos cuja existência é anterior e possível sem o humano, mesmo que o pensamento (e o conhecimento) a respeito só seja possível com o ser humano. Eles podem ser estudados por cientistas específicos sem a presença do humano. Entretanto, quando se estudam os sistemas biofísicos o instrumental teórico criado pelo humano funciona como um construtor de uma natureza, que será outra perante os olhos dos humanos que não tenham esse dado instrumental. Isso permite que  a natureza que se enxerga não se separa das lógicas vinculadas às possibilidades do pensamento construtor. Discursar sobre a força gravitacional, ou sobre uma bactéria já é falar da sociedade, como diz Bruno Latour. Ele argumenta que cada sociedade constrói seus estados da natureza que asseguram a partição, a distribuição e um regime de relações entre o humano e o não humano. O regime relacional contém uma dimensão ideológica, que ao lado das práticas gera um compromisso. O compromisso moderno foi a separação radical e a dominação da natureza. Mas, há evidências que há uma redefinição desse compromisso em nossos dias. Ao menos, ele está em causa com o questionamento crescente, catalisado parcialmente e de diversas formas pela “cultura ambientalista”.

Algo que já devia estar estabelecido na cultura geográfica é que nem todos os elementos dos sistemas biofísicos estão presentes na (s) natureza (s), além do que a importância dos elementos incorporados é variável. Por exemplo: a geomorfologia já foi mais importante na natureza do geógrafo do que ela é atualmente, ao menos é isso o que afirma Georges Bertrand.  A natureza do mundo medieval não é a moderna. Mesmo contemporaneamente, a diversidade biológica era valorizada e considerada diferentemente do que é hoje. Por esse raciocínio pode ser dito que cada sociedade seleciona permanente e diferentemente o que é natural e o que não é, o que permite distinguir a cada momento que representações as sociedades têm do que a distingue da natureza (que ela mesma constrói). Mas, possibilita também distinguir o que separa a natureza do mundo biofísico.

Uma conclusão parcial que pode alterar um pouco as discussões seria o reconhecimento que não são os sistemas biofísicos propriamente ditos que constituem o desafio social maior (aliás, não os conhecemos em si, nem em sua integralidade). O grande desafio contemporâneo é compreender como construímos a natureza e a integramos no conjunto social. Outro desafio é perceber que considerando esse ponto de vista que as únicas ciências naturais são as ciências sociais. Aliás, é lógico concluir que a natureza existe no interior das sociedades antes das ciências naturais.

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Jaime Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo, na área temática de Geografia. 


Bibliografia
BERQUE, Augustin. Ecoumène. Introduction à l’étude des millieux humainsParis: Belin, 2000. 445 p.
DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Éditions Gallimard, 2006. 618 p.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994. 149 p.
LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza. São Paulo/Bauru: Edusc, 2004. 412 p.
LUSSAULT, Michel. Nature (Espace et) In: LÉVY, J. et LUSSAULT, M. Dictionnaire de la Géographie et de l’espace des sociétés. Paris: Belin, 2003. p. 657-661.
MOSCOVICI, Serge. Essai sur l’histoire humaine de la nature. Paris: Flammarion, 1968. 687 p.
SCHAMA, Simon. Paisagem e MemóriaSão Paulo: Cia das Letras, 1996. 645 p.

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