Por Silvana Cristina da Silva
A teoria dos dois circuitos da economia
urbana foi criada por Milton Santos no final da década de 1960[1] para explicar a
urbanização dos países periféricos. Alguns equívocos são comuns no uso dessa
teoria, dos quais destacamos o uso de circuito superior e inferior como
sinônimos de atividades formais e informais, respectivamente.
Proposta por Milton Santos, a teoria dos dois
circuitos da economia urbana busca explicar como as cidades dos países
periféricos como o Brasil funcionam a partir de dois subsistemas urbanos: o
subsistema superior – composto pelas grandes empresas, bancos, atividades
ligadas ao ramo da alta tecnologia – e o subsistema inferior – composto pelas
atividades de pequena dimensão, com o uso de mão de obra intensiva, que se cria
e se recria com pouco capital. A população da cidade, independente de sua
classe de renda, possui necessidades permanentes. Em função da existência de
trabalho perene e bem pago de um lado, surge o circuito superior; por outro, a
existência de trabalho com baixa remuneração e intermitente, demanda a criação
de formas de sobrevivência por grande parte da população. Então, surge o
circuito inferior. Os dois subsistemas urbanos são formas de produzir,
distribuir, comercializar e consumir que geram materialidades distintas,
visíveis na paisagem urbana. No entanto, esses dois circuitos se relacionam dialeticamente
a partir da complementaridade, subordinação e concorrência. As cidades
expressam esses dois circuitos a partir dos lugares opacos e dos lugares
luminosos, que são polaridades, mas não dualismos.
A teoria dos dois circuitos foi recentemente retomada
e tem apresentando muitos estudos pertinentes e esclarecedores[2] para explicar o uso do
território brasileiro na atualidade.
Entretanto, tem sido muito usual em alguns
trabalhos o uso de circuito superior como sinônimo de atividade formal e
circuito inferior como sinônimo de atividade informal. Denotando aplicações
apressadas da teoria dos dois circuitos.
Essa teoria parte de outros princípios de
método e visa interpretar a economia política da cidade segundo a magnitude dos
capitais, o emprego de tecnologia e o nível organizacional nas atividades
produtivas, buscando evidenciar os nexos estruturais entre pobreza e riqueza.
A interpretação das atividades urbanas,
opondo um setor moderno e outro arcaico, vem sendo desenvolvida em várias áreas
do conhecimento desde os anos de 1950, sobretudo opondo racionalidade, que
seria o atributo central das atividades modernas e irracionalidade, que não
incorporaria princípios racionais de produção. A partir de uma outra
perspectiva teórica, a geográfica, uma das grandes contribuições de Milton
Santos foi a insistência na ideia de que o circuito inferior não é irracional e
nem ineficiente, porque encontramos racionalidade nessa forma de produzir e
distribuir. Racionalidade essa que é capaz de gerar trabalho para muitos e com
pouco capital[3].
O circuito inferior, onde há fabricação, comércio e serviços não-modernos, não
pode ser reduzido, como se faz atualmente, a uma questão tributária, ou seja,
simplesmente classificá-las de acordo com a obediência às normas do Estado.
A questão que se coloca sobre o formal e
informal é que, em grande medida, essa dualidade não explica um processo mais
profundo sobre o funcionamento da vida nos territórios periféricos, mais
precisamente da vida urbana. A formação de nossas cidades está pautada na dependência
de tecnologia. pela pobreza gerada por essa dependência e pelos processos de
modernização, que acirram a pobreza no período atual. Logo, compreender a
existência do comércio popular e das mais diferentes atividades que surgem na
cidade para a sobrevivência exige que se pense além da regulação do Estado.
Inclusive, as incessantes tentativas do Estado em combater os “informais”
evidencia o significado do Estado, para que ele serve e a quem ele serve.
A teoria dos dois circuitos da economia
urbana surge no sentido de explicar o funcionamento da cidade a partir da
relação entre os grupos sociais privilegiados e os menos abastados dentro da
sociedade de classes, sendo que tais grupos criam formas urbanas que revelam o
profundo imbricamento entre esses grupos. Falar dos imigrantes bolivianos na
cidade de São Paulo é também falar das grandes empresas do comércio varejista
do vestuário como C&A, Zara, Pernambucanas, Marisa, entre outras. Não é
possível afirmar que essas empresas sejam totalmente formais. O circuito de
produção da C&A, Zara, Pernambucas e Marisa[4] passa pelo uso de mão de
obra imigrante precarizada e não formalizada. O funcionamento do circuito
espacial de produção do vestuário sofreu reorganização na década de 1990 e a
principal inovação das grandes empresas do ramo foi o uso da subcontratação de oficinas
de costura de forma sistemática. A maioria dessas oficinas apresenta problemas
em sua formalização. Desta forma, a
economia formal e informal se mistura e essa categorização perde o sentido.
Além disso, a divisão da economia em formal e informal, do ponto de vista
geográfico, não explica a relação entre a cidade rica e abastada e a cidade
pobre.
Os dois circuitos formam o subsistema urbano,
sendo um equívoco a análise da economia urbana por apenas um desses circuitos,
pois eles funcionam de forma complementar, concorrente e o circuito inferior
subordina-se ao circuito moderno das grandes empresas porque esse último
controla a variáveis-chave do período. A base da distinção entre esses dois
subsistemas não é o elemento formalidade ou informalidade e sim o modo de
organização e o uso de capital e tecnologia.
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[1] Há vários artigos de Milton Santos publicados nas décadas de 1960 e 1970 sobre o tema. No entanto, é no livro o “Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana”, que a teoria está sistematizada. Obra publicada primeiramente em francês: SANTOS, Milton. L’espace partagé. Les deux circuits de l’esconomie urbaine dês pays sous-développés. Paris, M-Th Génin. Librairies Techniques, 1975. A primeira edição em português é de 1979.
[2] Especialmente realizados pela Profa. Dra. María Laura Silveira.
[3]Entrevista com a Professora María Laura realizada em 02 de novembro de 2007. Revista Discente Expressões Geográficas. Florianópolis – SC, Nº04, p. 01-15, maio/2008. Disponível em < http://www.geograficas.cfh.ufsc.br/arquivo/ed04/entrevista.pdf> Acesso em 28 de julho de 2011.
[4] Informações da Superintendência do Trabalho do Estado de São Paulo. Veja reportagens no site da agência de notícias Repórter Brasil: http://www.reporterbrasil.org.br/.
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Silvana Cristina da Silva doutora em
geografia pela Universidade Estadual Paulista – UNICAMP. Atualmente atua como
professora-tutora (FUNDUNESP/UNESP de Presidente Prudente) do curso de
especialização em Geografia da Rede de Formação de Professores do estado de São
Paulo (REDEFOR).
Olá sou Beatriz,
ResponderExcluirGostaria de agradecer pois este texto esclareceu muitas duvidas que eu tinha acerca dos conceitos dos circuitos inferior e superior da economia. Obrigado.
Os dois circuitos da economia brasileira estamos estudando, agora ficou mais visível estudar sobre os dois circuitos da economia.
ResponderExcluirExiste algum outro autor que trabalhe o conceito de circuito misto?
ResponderExcluirCaro Enderson: talvez os trabalhos de Francisco de Oliveira (CEBRAP/USP) tragam ideias nessa linha, ao discutir, criticamente, a Razão Dualista. Em outro contexto, por certo. Mas a ideia do "misto" é talvez imprecisa, melhor seria trabalhar as complementaridades/oposições entre os circuitos e dimensões, sem pensar que complementar seja misto, fuja às oposições. Abraços, Luiz Antonio de Castro Santos, UFSB, Porto Seguro, Bahia.
Excluirnão vamos jogar a água do banho fora, junto com o bebê. Os conceitos de informalidade e formalidade não são descartáveis, são extremamente úteis justamente quando empregados em sua complementaridade. Ou seja, há aqui uma dialética ainda oculta -- se ficarmos apenas com os circuitos de Milton -- que deve ser trazida à tona: circuitos ligados ao capital, (in)formalidades ligadas ao Estado. Obrigado. Professor Luiz Antonio de Castro Santos, UFSB.
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