Por Fernanda Padovesi Fonseca e
Eduardo Dutenkefer
25/07/12
25/07/12
A cartografia empregada pela Geografia clássica era
fundamentalmente sustentada num espaço cartográfico rígido. Espaço geométrico
euclidiano, concebido para representar a natureza (o espaço físico), mas quase
sempre inadequado para a representação do espaço social (ou do espaço como
dimensão do social) onde as métricas euclidianas nem sempre significam algo
importante. O obstáculo é que a geometria euclidiana origina-se num universo
mental difícil de contornar, pois está naturalizado.
A renovação da Geografia aprofunda suas discussões
e elaborações sobre o espaço e sua função no todo social. Introduz-se a
concepção de espaço relativo, de inspiração leibniziana, que rompe com a ideia
unívoca de espaço absoluto e de sua representação euclidiana (o espaço
cartográfico tradicional) (LÉVY; LUSSAULT, 2003, p. 325-333). A cartografia tem
um papel chave a cumprir, que é o de flexibilizar suas representações (e a
linguagem) de modo a apreender fenômenos que essas novas elaborações vão
observar. A concepção sobre o mapa como uma representação gráfica constituída por
seu fundo (escala, projeção e métrica) acrescido da linguagem propriamente dita
que relaciona os objetos geográficos sobre esse fundo (com base na semiologia
gráfica de Bertin), abre uma perspectiva produtiva para a representação do
espaço. Por exemplo: a possibilidade da escolha da métrica num mapa que não
seja a métrica euclidiana, liberta a representação e abre alternativas para a
representação da complexidade do espaço. Quais as métricas que podem ser
utilizadas na avaliação das dinâmicas espaciais e quais as possibilidades de
representação que elevem o mapa a uma função de polo consistente de discurso?
Métricas que apreendam o espaço segundo distância-tempo, distância-custo,
distância-segregação “sociológica” são possibilidades a explorar entre muitas
outras a serem desenvolvidas.
Esse espírito estará presente nas representações
cartográficas do projeto O meio geográfico atual do Rio Grande do
Norte: novas materialidades, novas dinâmicas[1]. Serão redobrados os
cuidados com os recursos de linguagens (também muito naturalizados, assim como
o fundo euclidiano), buscando outras possibilidades de representação também na
modelização gráfica (a coremática de Roger Brunet)[2], (BRUNET, 1987) e abrindo
espaços para discussão de representações em fundos de mapa não-euclidianos,
tais como as anamorfoses ou transformações cartográficas de posição (CAUVIN;
ESCOBAR; SERRADJ, 2007, 2008). Ainda é possível a representação de relações no
espaço geográfico sem um fundo de mapa, conforme os exemplos de representações onde
a localização dos objetos, por sua natureza, é independente da informação
cartográfica da superfície[3], tal como em certas redes geográficas.
Outra questão fundamental a ser
observada na elaboração e análise de mapas será a sua linguagem propriamente
dita. Segundo Serge Bonin (1997), a Semiologia Gráfica constitui-se numa
linguagem, pois as representações gráficas são sistemas de signos que
possibilitam construções comunicativas de relações de diversidade, de ordem ou
de proporcionalidade existente entre os dados quantitativos ou qualitativos.
Nesse domínio encontram-se a elaboração de mapas e a produção dos gráficos e
das redes (organogramas, dendogramas). A gráfica enquanto representação é a
estruturação e a própria construção das imagens, que se baseiam numa gramática
sustentada pelas leis da percepção visual e da percepção universal, que é o que
define a Semiologia Gráfica. A linguagem visual está ligada a um sistema
atemporal e espacial, diferente da linguagem verbal ligada a um sistema temporal
e linear. O resultado é a visão imediata e total de uma imagem no nível global,
construída segundo as regras dessa gramática, portanto, de compreensão
imediata:
As construções gráficas elaboradas segundo os
parâmetros da Semiologia Gráfica trazem informação e reflexão. Desta forma, os
textos escritos sobre um tema específico representado em um mapa deveriam ser
escritos após a confecção do mapa e não antes. (BONIN, 1997, p. 4, tradução
nossa)
Dessa forma justifica-se a produção de mapas pois,
como imagens, revelam relações não apresentadas por outros tipos de linguagem,
a partir do momento que trabalham com uma linguagem atemporal e espacial. Logo
estamos diante de uma forma que possui analogia com o espaço geográfico, o que
pode ser um potencial para a cartografia, ela própria, ser um campo de
desenvolvimento do pensamento geográfico.
Uma proposta de um fundo de mapa para o Rio Grande
do Norte é feita num primeiro momento pela simplificação dos contornos do
estado e dos municípios. Tal simplificação vem de encontro à necessidade de
revelar a informação sem o “peso” de limites que poderiam comprometer a
visualização do fenômeno cartografado. Podemos evocar aqui a fala de Robert
Ferras, companheiro de Roger Brunet e Hervé Théry no dicionário Les
Mots de la Géographie: “Cansei dos mapas com mal de Parkinson”. Esse
procedimento é necessário e foi realizado com o aplicativo
“MapShaper”[4] . Após a simplificação são mapeados os dados da
densidade da população municipal em 2010 (IBGE, Censo 2010). É tomado o cuidado
para o uso de uma variável visual da imagem (valor) para ordenação da densidade
demográfica e formação da imagem da espacialização do fenômeno. O que predomina
visualmente nesse primeiro mapa em fundo euclidiano são os tons claros, das
menores densidades demográficas. O que é respondido visualmente é que a maioria
dos municípios está em classes das densidades demográficas menores. Agora, a
questão da predominância de um fenômeno populacional, que diz respeito portanto
aos contingentes populacionais, só é revelada por meio do fundo em anamorfose,
cujos tamanhos no fundo de mapa expressam a população absoluta e não a dimensão
territorial dos municípios. No cartograma em anamorfose o predomínio é dos tons
escuros, indicando que a maior parte da população vive em municípios com maior
densidade demográfica. O que era de se esperar, mas que não é revelado pelo
mapa em fundo euclidiano.
A grade da anamorfose revela os
dois polos populacionais – Natal e sua região metropolitana e Mossoró. Mas vale
ressaltar que qualquer fenômeno representado no fundo euclidiano no modo de
implantação zonal (os chamados mapas coropléticos) vai aparecer mais em Mossoró
que em Natal. E num mapa, o que se vê, é o que conta.
Anamorfose: Densidade de População do Rio Grande do Norte.
______________________
[1] Programa da CAPES
PROCAD-Novas Fronteiras, em vigência desde março de 2010, que tem a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como Proponente, sob a coordenação
do Prof. Aldo Aloísio Dantas da Silva, e a Universidade de São Paulo e a
Universidade Estadual de Campinas como instituições associadas, sob a
coordenação, respectivamente, da Profª Mónica Arroyo e do Prof. Márcio Cataia.
[2] A concepção de espaço que
sustenta a coremática não é compatível com a visão leibniziana de espaço, no
entanto, as ideias da modelização gráfica se não forem vistas como expressão de
“leis do espaço” podem ajudar a alimentar um repertório cartográfico para
produção de mapas.
[3] A ver no artigo de Patrick
Poncet “Le fond, c´est inutile”, na publicação La carte, enjeu
contemporain.
[4] Aplicativo on line que por meio
de 3 diferentes métodos, generaliza fundos de mapa digitais que estejam em
formato shapefile. Disponível
em: <http://mapshaper.org/>. Acesso: 16/09/2011.
[MapShaper is a free online
editor for Polygon and Polyline Shapefiles. It has a Flash interface that runs
in an ordinary web browser - The MapShaper project was conceived in
2005 by Matthew Bloch |http://maps.grammata.com/ - New York Times graphics
editor| and Mark A. Harrower |Associate Professor of Geography, UW-Madison|
|http://www.geography.wisc.edu/~harrower/| at the University of Wisconsin,
Madison Geography Department - USA]. Detalhes do aplicativo no “paper”
disponível em: http://maps.grammata.com/autocarto2006_paper.pdf
______________________
Fernanda Padovesi Fonseca é professora do departamento de geografia da
USP.
Eduardo Dutenkefer é geógrafo e mestre em geografia.
Bibliografia
BONIN, Serge. Le développement
de la graphique de 1967 a 1997. In : Colloque 30 ans de
semiologie graphique, novembro de 1997. Disponível
em: http://cybergeo.revues.org/490 .
Acesso em: 01/07/2012.
BRUNET, Roger. La carte mode
d’emploi. Paris, Fayard/Reclus, 1987. 269 p.
CAUVIN, Colette ;
ESCOBAR, Francisco ; SERRADJ, Aziz. Cartographie thématique 2 :
des transformations incontournables. Paris: Lavoisier/Hermes, 2007. 269 p.
CAUVIN, Colette ;
ESCOBAR, Francisco ; SERRADJ, Aziz. Cartographie thématique 4 :
des transformations renouvelés. Paris: Lavoisier/Hermes, 2008. 198 p.
LÉVY, Jacques; LUSSAULT,
Michel. Espace. In: LÉVY, Jacques; LUSSAULT, Michel (Org.). Dictionnaire
de la Géographie et de l’espace des sociétes. Paris: Belin, 2003. p.
325-333.
PONCET, Patrick. Le fond,
c´est inutile. In : LÉVY, Jacques ; PONCET, Patrick ; TRICOIRE,
Emmanuelle. La carte, enjeu contemporain. Paris, Dossier nº 8036,
Documentation photographique, La Documentation Française, 2003.
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