sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O MAPA DO RIO GRANDE DO NORTE E A MÉTRICA

Por Fernanda Padovesi Fonseca e
Eduardo Dutenkefer
25/07/12


A cartografia empregada pela Geografia clássica era fundamentalmente sustentada num espaço cartográfico rígido. Espaço geométrico euclidiano, concebido para representar a natureza (o espaço físico), mas quase sempre inadequado para a representação do espaço social (ou do espaço como dimensão do social) onde as métricas euclidianas nem sempre significam algo importante. O obstáculo é que a geometria euclidiana origina-se num universo mental difícil de contornar, pois está naturalizado. 
A renovação da Geografia aprofunda suas discussões e elaborações sobre o espaço e sua função no todo social. Introduz-se a concepção de espaço relativo, de inspiração leibniziana, que rompe com a ideia unívoca de espaço absoluto e de sua representação euclidiana (o espaço cartográfico tradicional) (LÉVY; LUSSAULT, 2003, p. 325-333). A cartografia tem um papel chave a cumprir, que é o de flexibilizar suas representações (e a linguagem) de modo a apreender fenômenos que essas novas elaborações vão observar. A concepção sobre o mapa como uma representação gráfica constituída por seu fundo (escala, projeção e métrica) acrescido da linguagem propriamente dita que relaciona os objetos geográficos sobre esse fundo (com base na semiologia gráfica de Bertin), abre uma perspectiva produtiva para a representação do espaço. Por exemplo: a possibilidade da escolha da métrica num mapa que não seja a métrica euclidiana, liberta a representação e abre alternativas para a representação da complexidade do espaço. Quais as métricas que podem ser utilizadas na avaliação das dinâmicas espaciais e quais as possibilidades de representação que elevem o mapa a uma função de polo consistente de discurso? Métricas que apreendam o espaço segundo distância-tempo, distância-custo, distância-segregação “sociológica” são possibilidades a explorar entre muitas outras a serem desenvolvidas.
Esse espírito estará presente nas representações cartográficas do projeto O meio geográfico atual do Rio Grande do Norte: novas materialidades, novas dinâmicas[1]. Serão redobrados os cuidados com os recursos de linguagens (também muito naturalizados, assim como o fundo euclidiano), buscando outras possibilidades de representação também na modelização gráfica (a coremática de Roger Brunet)[2], (BRUNET, 1987) e abrindo espaços para discussão de representações em fundos de mapa não-euclidianos, tais como as anamorfoses ou transformações cartográficas de posição (CAUVIN; ESCOBAR; SERRADJ, 2007, 2008). Ainda é possível a representação de relações no espaço geográfico sem um fundo de mapa, conforme os exemplos de representações onde a localização dos objetos, por sua natureza, é independente da informação cartográfica da superfície[3], tal como em certas redes geográficas. 
Outra questão fundamental a ser observada na elaboração e análise de mapas será a sua linguagem propriamente dita. Segundo Serge Bonin (1997), a Semiologia Gráfica constitui-se numa linguagem, pois as representações gráficas são sistemas de signos que possibilitam construções comunicativas de relações de diversidade, de ordem ou de proporcionalidade existente entre os dados quantitativos ou qualitativos. Nesse domínio encontram-se a elaboração de mapas e a produção dos gráficos e das redes (organogramas, dendogramas). A gráfica enquanto representação é a estruturação e a própria construção das imagens, que se baseiam numa gramática sustentada pelas leis da percepção visual e da percepção universal, que é o que define a Semiologia Gráfica. A linguagem visual está ligada a um sistema atemporal e espacial, diferente da linguagem verbal ligada a um sistema temporal e linear. O resultado é a visão imediata e total de uma imagem no nível global, construída segundo as regras dessa gramática, portanto, de compreensão imediata:
As construções gráficas elaboradas segundo os parâmetros da Semiologia Gráfica trazem informação e reflexão. Desta forma, os textos escritos sobre um tema específico representado em um mapa deveriam ser escritos após a confecção do mapa e não antes. (BONIN, 1997, p. 4, tradução nossa)
Dessa forma justifica-se a produção de mapas pois, como imagens, revelam relações não apresentadas por outros tipos de linguagem, a partir do momento que trabalham com uma linguagem atemporal e espacial. Logo estamos diante de uma forma que possui analogia com o espaço geográfico, o que pode ser um potencial para a cartografia, ela própria, ser um campo de desenvolvimento do pensamento geográfico.
Uma proposta de um fundo de mapa para o Rio Grande do Norte é feita num primeiro momento pela simplificação dos contornos do estado e dos municípios. Tal simplificação vem de encontro à necessidade de revelar a informação sem o “peso” de limites que poderiam comprometer a visualização do fenômeno cartografado. Podemos evocar aqui a fala de Robert Ferras, companheiro de Roger Brunet e Hervé Théry no dicionário Les Mots de la Géographie: “Cansei dos mapas com mal de Parkinson”. Esse procedimento é necessário e foi realizado com o aplicativo “MapShaper”[4] . Após a simplificação são mapeados os dados da densidade da população municipal em 2010 (IBGE, Censo 2010). É tomado o cuidado para o uso de uma variável visual da imagem (valor) para ordenação da densidade demográfica e formação da imagem da espacialização do fenômeno. O que predomina visualmente nesse primeiro mapa em fundo euclidiano são os tons claros, das menores densidades demográficas. O que é respondido visualmente é que a maioria dos municípios está em classes das densidades demográficas menores. Agora, a questão da predominância de um fenômeno populacional, que diz respeito portanto aos contingentes populacionais, só é revelada por meio do fundo em anamorfose, cujos tamanhos no fundo de mapa expressam a população absoluta e não a dimensão territorial dos municípios. No cartograma em anamorfose o predomínio é dos tons escuros, indicando que a maior parte da população vive em municípios com maior densidade demográfica. O que era de se esperar, mas que não é revelado pelo mapa em fundo euclidiano.
A grade da anamorfose revela os dois polos populacionais – Natal e sua região metropolitana e Mossoró. Mas vale ressaltar que qualquer fenômeno representado no fundo euclidiano no modo de implantação zonal (os chamados mapas coropléticos) vai aparecer mais em Mossoró que em Natal. E num mapa, o que se vê, é o que conta.

Anamorfose: Densidade de População do Rio Grande do Norte.

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[1] Programa da CAPES PROCAD-Novas Fronteiras, em vigência desde março de 2010, que tem a Universidade Federal do Rio Grande do Norte como Proponente, sob a coordenação do Prof. Aldo Aloísio Dantas da Silva, e a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual de Campinas como instituições associadas, sob a coordenação, respectivamente, da Profª Mónica Arroyo e do Prof. Márcio Cataia.

[2] A concepção de espaço que sustenta a coremática não é compatível com a visão leibniziana de espaço, no entanto, as ideias da modelização gráfica se não forem vistas como expressão de “leis do espaço” podem ajudar a alimentar um repertório cartográfico para produção de mapas.
[3] A ver no artigo de Patrick Poncet “Le fond, c´est inutile”, na publicação La carte, enjeu contemporain.
[4] Aplicativo on line que por meio de 3 diferentes métodos, generaliza fundos de mapa digitais que estejam em formato shapefileDisponível em: <http://mapshaper.org/>. Acesso: 16/09/2011.
[MapShaper is a free online editor for Polygon and Polyline Shapefiles. It has a Flash interface that runs in an ordinary web browser  - The MapShaper project was conceived in 2005 by Matthew Bloch |http://maps.grammata.com/ - New York Times graphics editor| and Mark A. Harrower |Associate Professor of Geography, UW-Madison| |http://www.geography.wisc.edu/~harrower/| at the University of Wisconsin, Madison Geography Department - USA].  Detalhes do aplicativo no “paper” disponível em: http://maps.grammata.com/autocarto2006_paper.pdf

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Fernanda Padovesi Fonseca é professora do departamento de geografia da USP.
Eduardo Dutenkefer é geógrafo e mestre em geografia.



Bibliografia
BONIN, Serge. Le développement de la graphique de 1967 a 1997. In : Colloque 30 ans de semiologie graphique,  novembro de 1997. Disponível em: http://cybergeo.revues.org/490 . Acesso em: 01/07/2012.
BRUNET, Roger. La carte mode d’emploi. Paris, Fayard/Reclus, 1987. 269 p.
CAUVIN, Colette ; ESCOBAR, Francisco ; SERRADJ, Aziz. Cartographie thématique 2 : des transformations incontournables. Paris: Lavoisier/Hermes, 2007. 269 p.
CAUVIN, Colette ; ESCOBAR, Francisco ; SERRADJ, Aziz. Cartographie thématique 4 : des transformations renouvelés. Paris: Lavoisier/Hermes, 2008. 198 p.
LÉVY, Jacques; LUSSAULT, Michel. Espace. In: LÉVY, Jacques; LUSSAULT, Michel (Org.). Dictionnaire de la Géographie et de l’espace des sociétes. Paris: Belin, 2003. p. 325-333.
PONCET, Patrick. Le fond, c´est inutile. In : LÉVY, Jacques ; PONCET, Patrick ; TRICOIRE, Emmanuelle. La carte, enjeu contemporain. Paris, Dossier nº 8036, Documentation photographique, La Documentation Française, 2003.

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