Por Jaime
Oliva
Desde
o mês de abril de 2012 o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade
de São Paulo tem a honra de abrigar o arquivo pessoal de Milton Santos. Antes, sua biblioteca já havia sido tombada no
IEB. O arquivo foi doado a essa instituição pela sua esposa Marie-Hélène
Tiercelin dos Santos. Agora ele deverá ser processado: inventariado,
classificado e organizado para ser colocado à disposição da pesquisa pública.
No IEB ele ajudará a compor um acervo valioso, que já conta com os fundos de
autores e artistas como Mário de Andrade, Camargo Guarnieri, Tarsila do Amaral, Graciliano Ramos,
Guimarães Rosa, Caio Prado Jr., Pierre Monbeig e vários outros.
Examinando
superficialmente as caixas que compõem o arquivo algo, entre tantas coisas, me
chamou atenção: algumas caixas com títulos que não lembram imediatamente temas
clássicos da geografia (como técnica, tempo, formação econômica e modo de
produção) e uma caixa denominada interdisciplinaridade.
Isso que parece trivial na verdade não é, visto que a geografia no século XX
desenvolveu-se (no Brasil inclusive) dentro de certo isolamento intelectual e
institucional. E aqui vale lembrar um aspecto da trajetória e da obra de Milton
Santos: ele foi um precursor e, de fato, um renovador da geografia. Não apenas
no plano nacional, mas no plano internacional, como se sabe. E não há como
caracterizar e discutir o teor e o significado dessa renovação sem referências
às relações interdisciplinares que seu pensamento supunha e que sua obra
testemunha. Relações interdisciplinares que não foram somente matéria-prima
para a nova geografia, mas também ofereceram novos aportes da geografia para o
conjunto das ciências humanas, e também, por que não, para a ordem cultural em
geral.
Para
ilustrar o que significou a obra de Milton Santos para a geografia, mas
propriamente para a imagem que a geografia possuía (e ainda em boa medida
possui) há uma ocorrência bastante interessante (diria que até mesmo saborosa)
que eu presenciei e, cujo registro não mais encontrei. Talvez, em seu arquivo
esse registro esteja presente.
Trata-se
do verdadeiro estranhamento surgido entre o filósofo José Arthur Giannotti e
Milton Santos, num debate público na FFLCH cujo tema versava sobre a abertura
do Brasil à chamada globalização, isso por ocasião do primeiro mandato
presidencial de Fernando Henrique Cardoso. Após a intervenção de Milton Santos,
marcada por um forte tom crítico, o filósofo Giannotti tomou a palavra e,
surpreendentemente, manifestou seu estranhamento quanto à fala de Milton Santos
dizendo mais ou menos seguinte: que ele não esperava uma intervenção daquele
estilo – ele esperava que um geógrafo se referisse a outras coisas “típicas de um
geógrafo” - coisas mais concretas e menos interpretativas, localizações, fluxos
geográficos de volumes estatísticos, por exemplo.
Afinal,
Milton Santos falava de globalização perversa, de dominâncias tecnológicas que
contrabandeavam ideologias de subordinação
e coisas do gênero. Mobilizava para tal alguns autores estranhos na fala de um
geógrafo: Jean-Paul Sartre, J. Habermas, Georg Simmel, Lucien Goldman, Max
Weber, Abraham Moles, Jacques Ellul e outros.
Milton
Santos ficou muito ofendido, quase levou para o lado pessoal. Atacou dizendo
que Giannotti não queria a crítica... mas, de minha parte penso não era para
tanto. Meu entendimento era a de que Giannotti tinha razão de estranhar, afinal
Milton Santos não era compatível com a imagem corrente da geografia e de um
geógrafo. Ele cultivava um hábito incomum entre os geógrafos de sua geração
(empiricistas radicais, algo simbolizado pelo “conhecimento direto do terreno”)
que era o da leitura de filosofia e ciências sociais. Por isso, ele era um dos
poucos que tinha a capacidade de investir em sistemas teóricos coerentes, como
de fato o fez. Na verdade, ele representava uma nova imagem, a imagem da
renovação e, sua postura causava estranhamento, antes de tudo, na própria
“comunidade geográfica”, comunidade essa, até hoje excessivamente comunitária.
E o que compunha essa nova imagem: um geógrafo que tinha no discurso teórico a
marca principal de sua identidade, isso numa área dominada por um DNA
empiricista. E só quem se formou em meados do século XX consegue aquilatar o
quanto isso era inusitado.
Milton
Santos atinge a notoriedade no Brasil com o prêmio Vautrin Lud (1994) - tratado
como uma espécie de Nobel da área, algo que foi descoberto pela imprensa
paulista, Estadão em primeiro lugar. Nesse momento, acontecem outros inusitados. Descobre-se que
um geógrafo pode falar sobre mundialização, pode ser crítico e... teórico, e
escritor. Que ele podia ser uma referência intelectual apesar da área mais ou
menos invisível de onde ele falava. E descobre-se um acadêmico que consegue
estabelecer “uma química rara”, com um estilo comunicativo que obtém audiência
inclusive junto a ordem cultural geral. Portanto, mais que uma situação de
interdisciplinaridade, Milton Santos protagonizou situações incomuns de
relações interculturais. Sua colaboração na imprensa exemplifica isso. Nessa
com constância seus argumentos teóricos empregados na renovação da geografia
apareciam, por vezes aplicados, mas por vezes em formato abstrato.
Sua
notabilidade coincidiu com sua maturidade intelectual, com um momento em que
ele aprofundava a dimensão teórica de sua obra (cuja expressão principal foi o
livro A Natureza do Espaço), e foi
discutindo-a que ele conseguiu grande audiência fora do seu âmbito de origem,
fora da geografia. O que não deixa de surpreender, visto que o discurso teórico
não é de muito apelo.
Essa
capacidade de transitar e de se comunicar é uma das dimensões mais atraentes do
perfil de Milton Santos. Sem dúvida, isso favoreceu a recepção de sua obra fora
do âmbito da geografia. A documentação
que seu arquivo reúne pode melhor esclarecer esse aspecto e iluminar vários
outros do perfil do grande geógrafo.
Jaime Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo, na área temática de Geografia.
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