quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O ARQUIVO DE MILTON SANTOS E A INTERDISCIPLINARIDADE


Por Jaime Oliva

Desde o mês de abril de 2012 o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo tem a honra de abrigar o arquivo pessoal de Milton Santos.  Antes, sua biblioteca já havia sido tombada no IEB. O arquivo foi doado a essa instituição pela sua esposa Marie-Hélène Tiercelin dos Santos. Agora ele deverá ser processado: inventariado, classificado e organizado para ser colocado à disposição da pesquisa pública. No IEB ele ajudará a compor um acervo valioso, que já conta com os fundos de autores e artistas como Mário de Andrade, Camargo Guarnieri,  Tarsila do Amaral, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Caio Prado Jr., Pierre Monbeig e vários outros.

Examinando superficialmente as caixas que compõem o arquivo algo, entre tantas coisas, me chamou atenção: algumas caixas com títulos que não lembram imediatamente temas clássicos da geografia (como técnica, tempo, formação econômica e modo de produção) e uma caixa denominada interdisciplinaridade. Isso que parece trivial na verdade não é, visto que a geografia no século XX desenvolveu-se (no Brasil inclusive) dentro de certo isolamento intelectual e institucional. E aqui vale lembrar um aspecto da trajetória e da obra de Milton Santos: ele foi um precursor e, de fato, um renovador da geografia. Não apenas no plano nacional, mas no plano internacional, como se sabe. E não há como caracterizar e discutir o teor e o significado dessa renovação sem referências às relações interdisciplinares que seu pensamento supunha e que sua obra testemunha. Relações interdisciplinares que não foram somente matéria-prima para a nova geografia, mas também ofereceram novos aportes da geografia para o conjunto das ciências humanas, e também, por que não, para a ordem cultural em geral. 

Para ilustrar o que significou a obra de Milton Santos para a geografia, mas propriamente para a imagem que a geografia possuía (e ainda em boa medida possui) há uma ocorrência bastante interessante (diria que até mesmo saborosa) que eu presenciei e, cujo registro não mais encontrei. Talvez, em seu arquivo esse registro esteja presente. 

Trata-se do verdadeiro estranhamento surgido entre o filósofo José Arthur Giannotti e Milton Santos, num debate público na FFLCH cujo tema versava sobre a abertura do Brasil à chamada globalização, isso por ocasião do primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso. Após a intervenção de Milton Santos, marcada por um forte tom crítico, o filósofo Giannotti tomou a palavra e, surpreendentemente, manifestou seu estranhamento quanto à fala de Milton Santos dizendo mais ou menos  seguinte:  que ele não esperava uma intervenção daquele estilo – ele esperava que um geógrafo se referisse a outras coisas “típicas de um geógrafo” - coisas mais concretas e menos interpretativas, localizações, fluxos geográficos de volumes estatísticos, por exemplo. 

Afinal, Milton Santos falava de globalização perversa, de dominâncias tecnológicas que contrabandeavam  ideologias de subordinação e coisas do gênero. Mobilizava para tal alguns autores estranhos na fala de um geógrafo: Jean-Paul Sartre, J. Habermas, Georg Simmel, Lucien Goldman, Max Weber, Abraham Moles, Jacques Ellul e outros.

Milton Santos ficou muito ofendido, quase levou para o lado pessoal. Atacou dizendo que Giannotti não queria a crítica... mas, de minha parte penso não era para tanto. Meu entendimento era a de que Giannotti tinha razão de estranhar, afinal Milton Santos não era compatível com a imagem corrente da geografia e de um geógrafo. Ele cultivava um hábito incomum entre os geógrafos de sua geração (empiricistas radicais, algo simbolizado pelo “conhecimento direto do terreno”) que era o da leitura de filosofia e ciências sociais. Por isso, ele era um dos poucos que tinha a capacidade de investir em sistemas teóricos coerentes, como de fato o fez. Na verdade, ele representava uma nova imagem, a imagem da renovação e, sua postura causava estranhamento, antes de tudo, na própria “comunidade geográfica”, comunidade essa, até hoje excessivamente comunitária. E o que compunha essa nova imagem: um geógrafo que tinha no discurso teórico a marca principal de sua identidade, isso numa área dominada por um DNA empiricista. E só quem se formou em meados do século XX consegue aquilatar o quanto isso era inusitado.

Milton Santos atinge a notoriedade no Brasil com o prêmio Vautrin Lud (1994) - tratado como uma espécie de Nobel da área, algo que foi descoberto pela imprensa paulista, Estadão em primeiro lugar. Nesse momento,  acontecem outros inusitados. Descobre-se que um geógrafo pode falar sobre mundialização, pode ser crítico e... teórico, e escritor. Que ele podia ser uma referência intelectual apesar da área mais ou menos invisível de onde ele falava. E descobre-se um acadêmico que consegue estabelecer “uma química rara”, com um estilo comunicativo que obtém audiência inclusive junto a ordem cultural geral. Portanto, mais que uma situação de interdisciplinaridade, Milton Santos protagonizou situações incomuns de relações interculturais. Sua colaboração na imprensa exemplifica isso. Nessa com constância seus argumentos teóricos empregados na renovação da geografia apareciam, por vezes aplicados, mas por vezes em formato abstrato.  

Sua notabilidade coincidiu com sua maturidade intelectual, com um momento em que ele aprofundava a dimensão teórica de sua obra (cuja expressão principal foi o livro A Natureza do Espaço), e foi discutindo-a que ele conseguiu grande audiência fora do seu âmbito de origem, fora da geografia. O que não deixa de surpreender, visto que o discurso teórico não é de muito apelo.  

Essa capacidade de transitar e de se comunicar é uma das dimensões mais atraentes do perfil de Milton Santos. Sem dúvida, isso favoreceu a recepção de sua obra fora do âmbito da geografia.  A documentação que seu arquivo reúne pode melhor esclarecer esse aspecto e iluminar vários outros do perfil do grande geógrafo.



Jaime Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo, na área temática de Geografia. 


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